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13.11.09

Coisas não-ditas, demônios descontentes e beterrabas

O terceiro livro é o mais interessante dos três. Trata-se da coletânea de contos O doce vermelho das beterrabas, de João Batista Ferreira (nascido em 1959, gaúcho radicado em São Paulo). O prefácio é do saudoso Caio Fernando Abreu (na verdade, é um trecho de uma coletânea de novos autores paulistas que ainda hoje permanece inédita) e a orelha é de Marcelino Freire. Isso poderia servir como desculpa para tentar trazer um verniz de "relevância" pros contos de João Batista, mas nem precisava, porque os textos são, em sua maioria, irretocáveis (Dos dezessete contos, eu talvez tirasse 3 ou 4 para deixar o livro mais coeso e candidatá-lo ao rol dos livros do ano).

O livro inteiro exala um sentimento de perplexidade bittersweet, uma solidão incomensurável, um estado de "perda de si" nos personagens, e é tudo tão intenso que a gente começa a se questionar se estamos diante do livro de um "estreante". Mesmo quando os contos lembram um pouco Caio Fernando (sim, João Batista "apareceu" numa oficina literária ministrada por Caio no comecinho dos 90), como a epifania da enorme Júlia, com suas mãos pequenas, em "Leveza", a narrativa é conduzida de maneira bastante comedida, precisa, despreparando o leitor para o choque com o inevitável de cada um.

Eu disse "despreparando", e isso pode ser tomado como um elogio: João Batista Ferreira consegue, em diversos momentos, tirar a sensação de conforto do leitor, coloca-lo em choque com as arestas da narrativa, e essa experiência é de uma beleza cada vez mais rara na produção contemporânea, muito mais preocupada em reforçar uma (des)filiação a determinada tribo e a falar do mundinho "quarto-e-sala-na-zona-sul" que cansa a todo mundo que não vive num quarto e sala na Zona Sul do Rio.


Foto: Divulgação

"Flor" fala da obsessão de uma filha em repetir, a vida inteira, o desenho de uma flor proposto pelo pai na sua tenra infância, copiando-o nos mínimos detalhes. "Aniversário" consegue, logo nas primeiras linhas, fazer transbordar a riqueza do universo de uma secretária executiva quarentona e solteirona. Do conto que dá título ao livro, talvez o melhor de todos (e desde já um clássico), eu nem vou dizer nada, só vou me limitar a repetir o trecho que o Marcelino Freire cita na orelha do livro:

"- Carneirinhos?
- É. Contei quase trinta mil.
- E adormeceu?
- Não. Amanheceu."

Acho que, depois disso, tenho bem pouco a dizer. Vou ficar aqui, no meu cantinho, aguardando os próximos livros desses autores, cujas estréias valem a pena. Enquanto isso, fica a dica para o Natal: dê O doce vermelho das beterrabas de presente. Nem que seja pra você mesmo(a).
Erly Vieira Jr.